A possibilidade de um sócio administrador ajuizar uma ação de prestação de contas ou exibição de documentos contra outro sócio administrador é complexa e tem gerado debates no âmbito jurídico. A análise da jurisprudência revela que, em regra, tal ação não é cabível, exceto em situações específicas onde se demonstre uma gestão unilateral ou restrição de acesso às informações da sociedade. Este artigo explorará os contornos dessa discussão, com base nas fontes jurisprudenciais históricas analisadas.
O DEVER DE PRESTAR CONTAS E A ADMINISTRAÇÃO CONJUNTA
O cerne da questão reside no dever de prestar contas, previsto no artigo 1.020 da Lei n.º 10.406/2002 (“Código Civil”). Este dispositivo legal estabelece que os administradores são obrigados a prestar aos sócios contas justificadas de sua administração, apresentando anualmente o inventário, balanço patrimonial e o de resultado econômico. No entanto, quando a administração da sociedade é exercida de forma conjunta por dois ou mais sócios administradores, surge a dúvida se um deles pode exigir a prestação de contas do outro.
A jurisprudência tem se manifestado no sentido de que, em casos de administração conjunta, não cabe a ação de prestação de contas entre os sócios administradores. Isso porque, em tese, todos os administradores têm o dever comum de prestar contas à sociedade, e não entre si. Nesse cenário, a fiscalização se confunde com a própria poder de interferência na gestão.
Um dos fundamentos para essa visão é que, em sociedades menores, onde os sócios participam ativamente da administração, movimentam contas bancárias em conjunto e discutem cada operação, a fiscalização se torna parte da gestão. Dessa forma, não haveria um interesse de agir por parte de um sócio administrador contra outro, já que ambos são responsáveis pela gestão e, portanto, pelo dever de prestar contas.
EXCEÇÕES À REGRA: A ADMINISTRAÇÃO UNILATERAL E A RESTRIÇÃO DE ACESSO
Apesar da regra geral, a jurisprudência admite algumas exceções que autorizam a propositura da ação de prestação de contas entre sócios administradores. Estas exceções geralmente ocorrem quando um dos administradores comprova que:
- O outro administrador Exerceu a administração de forma isolada: Caso um dos sócios, embora formalmente administrador, demonstre que não participava ativamente da gestão e que o outro sócio administrava a sociedade de forma exclusiva. Essa situação pode ocorrer quando as atribuições gerenciais são divididas de acordo com as especialidades de cada administrador, ou quando um dos sócios é afastado da gestão por razões alheias à sua vontade. Nesses casos, o sócio que não exercia a administração de fato tem o direito de exigir a prestação de contas do sócio que efetivamente desempenhava essa função.
- Teve o acesso às informações contábeis restringido: Se o sócio administrador provar que, apesar de sua condição, não tinha acesso aos documentos e informações contábeis da sociedade. A restrição do acesso à documentação contábil pode ser uma evidência de que um dos sócios está administrando de forma unilateral, dificultando o controle pelos demais. Mesmo que o sócio tenha recebido informações ou relatórios, é preciso analisar se ele tinha pleno conhecimento da contabilidade da empresa, a ponto de dispensar a prestação de contas.
Nesse contexto, o simples fato de um sócio residir em outro local ou ter se afastado fisicamente da empresa não é suficiente para caracterizar uma administração unilateral ou a restrição de acesso. É preciso que haja provas concretas de que um dos sócios exercia a gestão de forma exclusiva e impedia o outro de fiscalizar as contas.
AÇÃO DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS: UM COMPLEMENTO À PRESTAÇÃO DE CONTAS
Em muitos casos, a ação de exibição de documentos é utilizada em conjunto ou como um instrumento preparatório para a ação de prestação de contas. O objetivo é garantir que o sócio tenha acesso aos documentos necessários para analisar a administração da sociedade e, eventualmente, justificar a necessidade de uma prestação de contas mais detalhada.
É importante ressaltar que a ação de exibição de documentos, assim como a de prestação de contas, não tem como objetivo principal investigar atos ilícitos ou responsabilizar o administrador. O foco é o esclarecimento das contas, a identificação de receitas e despesas e a apuração de eventual saldo. Questões referentes a desvios ou irregularidades devem ser tratadas em outras ações judiciais.
A IMPORTÂNCIA DA ANÁLISE DO CASO CONCRETO
A análise da jurisprudência demonstra que cada caso deve ser analisado individualmente. A existência de um contrato social que estabeleça a administração conjunta não é suficiente para impedir o ajuizamento da ação de prestação de contas, se as provas demonstrarem que a realidade fática era diferente. A decisão judicial deve levar em consideração as particularidades de cada situação, a complexidade da sociedade, o grau de envolvimento de cada sócio na gestão e o acesso às informações contábeis.
CONCLUSÃO
A possibilidade de um sócio administrador ajuizar uma ação de prestação de contas ou exibição de documentos contra outro sócio administrador é uma questão que depende da análise do caso concreto. A regra geral é que tal ação não é cabível quando há administração conjunta, mas existem exceções quando se comprova a gestão unilateral ou a restrição de acesso às informações da sociedade. A jurisprudência tem se mostrado atenta às nuances de cada situação, buscando garantir que os sócios tenham acesso às informações necessárias para fiscalizar a administração da sociedade e tomar decisões informadas. No entanto, é preciso destacar que as ações de prestação de contas e exibição de documentos não se prestam a apurar responsabilidades ou irregularidades, sendo destinadas, principalmente, a esclarecer as contas e apurar eventual saldo entre as partes.
REFERÊNCIAS
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